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Sou um caso perdido - Benedetti

Atualizado: 4 de set. de 2022



Sou um caso perdido (Mario Benedetti, Uruguai)


Por fim um crítico sagaz revelou

(já sabia que um dia iam descobrir)

que em meus contos eu sou parcial

e tangencialmente apela

que assuma a neutralidade

como qualquer intelectual que se respeite


acho que ele tem razão


sou parcial

disso não há dúvida

eu diria ainda que um parcial irresgatável

caso perdido enfim

já que por mais esforços que faça

nunca conseguirei ser neutro


em vários países deste continente

especialistas destacados

fizeram o possível e o impossível

para me curar da parcialidade

por exemplo na biblioteca nacional do meu país

ordenaram o expurgo parcial

dos meus livros parciais

na argentina me deram quarenta e oito horas

(senão me matavam) para que eu fosse embora

levando minha parcialidade nos ombros

por último no peru incomunicaram minha parcialidade

e me deportaram

se tivesse sido neutro

não teria precisado

dessas terapias intensivas

mas o que posso fazer

sou parcial

incuravelmente parcial

e ainda que possa soar um pouco estranho

totalmente

parcial


já sei

isso significa que não poderei aspirar

a tantíssimas honras e reputações

e preces e dignidades

que o mundo reserva aos intelectuais

que se respeitem

isto é aos neutros

com um agravante

como cada vez existem menos neutros

as distinções se dividem

entre pouquíssimos


depois de tudo e a partir

das minhas confessas limitações

devo reconhecer que por esses poucos neutros

tenho certa admiração

ou melhor lhes reservo certo assombro

já que na realidade é preciso um temperamento de aço

para se manter neutro diante de episódios como

girón

tlatelolco

trelew

pando

la moneda


é claro que uma pessoa

e talvez seja isso que o crítico queria me dizer

poderia ser parcial na vida privada

e neutro nas belas letras

digamos se indignar contra Pinochet

durante a insônia

e escrever contos diurnos

sobre a atlântida


não é má ideia

e claro

tem a vantagem

de que por um lado

teria conflitos de consciência

e isso sempre representa

um bom nutrimento para a arte

e por outro não deixaria espaço para sofrer ataques

da imprensa burguesa e/ou neutra


não é má ideia

mas

já me vejo descobrindo ou imaginando

no continente submerso

a existência de oprimidos e opressores

parciais e neutros

torturados e carrascos

ou seja a mesma confusão

cuba sim ianques não

dos continentes não submersos


de modo que

como parece que não tenho remédio

e estou definitivamente perdido

para a frutífera neutralidade

o mais provável é que siga escrevendo

contos não neutros

e poemas e ensaios e canções e novelas

não neutras

mas advirto que será assim

ainda que não tratem de torturas e prisões

ou outros tópicos que ao que parece

são insuportáveis para os neutros


será assim ainda que tratem de borboletas e nuvens

e duendes e peixinhos.


(Tradução Coletivo Trunca)

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