Prefácio para livro de Jeferson Garcia
Fiquei muito feliz com o convite para escrever o prefácio para o livro de estreia do camarada e poeta Jeferson Garcia! Segue abaixo o texto! E quem tiver interesse em adquirir o livro, escreva direto para o autor: https://www.facebook.com/jeferson.garcia.92
Estas poesias, semeadas, aqui, entre suas mãos e olhos, por Jeferson Garcia, e que rebentarão algo lá entre seu peito e o mundo, não são feitas apenas de palavras, tampouco se resumem à mera arte, “grande adereço da melancolia”, como criticava Roque Dalton[1]... são, antes, “fuzis / pedras palestinas / violão de Jara / e outras armas”. O que brota, neste livro, é vida em luta, vida em busca de mais vida, poesia de luta! Porque Jeferson é um poeta lutador e “não um fazedor de versos bonitos”, como disparava irônico Dardo Dorronzoro[2]. E não é que não haja beleza e alegria em seus versos – nunca abriremos mão de nosso direito ao prazer! -, mas não se trata aqui só dessa “alegria, alegria”, aérea e individualista que cantou certo Caetano, mas de outra, rebelde e coletiva, feita com “mãos de Ana / de Prestes, de Carlos / mãos que não são só minhas / nem só suas”, beleza parida “dessa luta diária contra quem sou / em defesa de quem quero ser”.
Insisto no termo “poesia de luta” para esta obra, fugindo do pântano de ambiguidades onde cabe praticamente tudo: “poesia social”, “poesia política”, “poesia comprometida” (como se toda poesia não fosse política e social!). Em nosso tempo tão retrógrado, rara é a poesia em luta! E ela se faz luta, porque quem as escreve é um lutador que combate, ombro a ombro, com sua classe. Sua consciência – em contradição com as relações conservadoras deste mundo – se move rebelde, em bando, buscando mais ar, mais tempo, mais tesão, mais palavras para compreender a si, o mundo, e anunciar o novo, a revolução que arma com os seus. Em Jeferson Garcia, o lutador e o poeta se confundem, panfletando ideias e poesias nas ruas, faça sol ou faça lua, ou no clandestino trabalho de base, com versos e conversas, mãos que se trancam em barricadas ou se entregam, em descoberta, escrevendo estórias ou a História, tudo são armas, “pedras, noite, poemas”.
E não é à toa que venho, há algum tempo, insistindo em falar das “poesias de luta”. Defendo que a “melhor” poesia, a mais necessária, a capaz de entoar o futuro na garganta do presente, nasce da poesia de luta. Poesia emanada da vanguarda revolucionária da classe trabalhadora, nascida daqueles e daquelas, como Jeferson, que enfrentam as negações mais intensas e diárias que o capital impõe ao trabalho, amplificadas por outras tantas fragmentações instituídas: gênero, cor de pele, orientação sexual, origem étnica. Nossas e nossos poetas, a partir desse posto avançado, enfrentando o que nos divide e mata, podem se conectar organicamente ao movimento da classe e às suas experiências históricas, poéticas e teóricas acumuladas. Sintetizam, assim, através da poesia, o universal em seu singular, desvelando o real em suas múltiplas determinações, nos unindo, nos armando, nos cultivando mais humanos: “poetas que / (agricultores da vida) / plantam versos / aguardando a chuva / falando da terra / com a esperança / de colher / outro mundo.”.
A obra de Jeferson forma-se em diálogo com as vozes do presente e do passado, tece crônicas subjetivas e objetivas de nosso período histórico, homenageia nossos mártires, olha-se nos espelhos da pele e da história, mergulha nas potencialidades e limites dos afetos e reflete, conosco, sobre este mundo, apontando caminhos para um outro. Nesse fazer-se em luta, afia sua poesia.
Resgatar, ler e conhecer os e as poetas que travaram o bom combate e prepararam o chão que hoje se pisa, muitas vezes perdendo suas vidas nesse combate, é tarefa que Jeferson realiza e assume como sua, “como memórias descalças que assombram os impunes / andamos por aí armados / de lápis na mão / e chapéu na cabeça”. Garcia busca essa ponte histórica com Benedetti, Neruda, Brecht e tantos outros. É o que vemos, por exemplo, no poema “Inventário de cicatrizes”, que leva o mesmo título de outro, mais antigo, de Alex Polari, poeta lutador brasileiro de incrível obra, produzida na prisão, em meio à tortura dos militares. Jeferson revisita essa temática e nos faz ver que a vida, hoje, “democrática”, ainda segue, por diferentes formas, torturante.
Negro e proletário, nosso poeta soube, desde cedo, que a vida e a morte, nesta sociedade, têm cor. Num dos poemas mais intensos do livro, “Autobiografia”, nos mostra o sensível e dolorido processo de questionar sua identidade: “eu me olhava / – menino, pequeno, fraco / e negro / – cor de medo // tentava me encontrar / na imensidão / daquele espelho”. Felizmente, tantos outros espelhos negros entraram em sua vida, Lumumbas, Sankaras, e permitiram que ele se visse com mais orgulho e escureza e nos prometesse: “eu que era tão simples: / preto em fundo branco / voltarei ao espelho: / serei vaidoso, o dia todo. O Ano inteiro”.
Também, na imensidão da pele e dos afetos, Jeferson navega, buscando dar vazão a essa revolução tão recalcada e proibida no corpo, às vezes se consumindo em suas armadilhas, noutras questionando os limites dos amores engaiolados. Mas, me parece, os momentos mais potentes de sua voz ocorrem quando, em primeira pessoa, como em “Autobiografia”, reflete conosco sobre si e sobre as pequenas-grandes misérias de nossa sociedade capitalista. Por exemplo, sobre a fragmentação e falta de sentido (“nos tornamos condomínios / fechados, reclusos e isolados”), que nos coloca, muitas vezes, tão perto e tão distantes uns dos outros, separados por “paredes visíveis / e mãos invisíveis”. O poeta se surpreende (e nós com ele!) ao ver como nossas consciências, educadas para o isolamento, mesmo depois do encontro intenso, retornam às suas conchas, caracóis presos em suas cápsulas ilusórias de indivíduo, o “que torna suportável / a consciência infeliz da servidão”.
Mas também nos mostra, de forma viva, o esforço de Sísifo que devotamos em nossa militância para romper essa ilusão, que turva não só os olhos dos “alienados”, mas, também, os nossos, como assume, autocrítico: “e me pergunto: / – quantos eu não vejo? / histórias, dores / memórias, cores”. Nessa mesma trilha, num dos mais belos poemas do livro, “Nossas lágrimas são insubmissas”, o poeta nos faz ver uma militante, de cima de um carro de som, bradando, inconformada, diante dessa epidêmica apatia: “ - Como podemos / estar saudáveis / se todos morrem?”. Pergunta que ecoa outra, tão inspiradora como terrível, feita há algum tempo por Drummond: “E se todos nós vivêssemos?”.
Mesmo que sem respostas para todas as perguntas que lança, Jeferson se lança ao mundo com algumas tantas, fortalecendo-se no sujeito coletivo, no partido, em que o poeta se faz força histórica, prolongando seus braços, sua voz, seu canto: “é você que se faz velho e novo ao mesmo tempo / que diante dos olhos do povo / anda encurvado / por carregar nossos sonhos / em suas costas”.
Sim, são tempos duros para os que se revoltam e constroem o comunismo, mas é nesses períodos que mais precisamos desta poesia, que conspira conosco, que nos acolhe, nos comove, e nos lembra quem já fomos, o que já fizemos, quem somos!, esta poesia que sabe que “é preciso construir hoje o outubro que se quer amanhã”, sendo o agora sempre a nossa hora, ainda que insistam que ficamos no passado: “- não confundam / nossas lágrimas / com derrota!”. Assim nos semeia Jeferson Garcia.
Jeff Vasques – abril/2022
(Poeta, palhaço e militante do PCB, organizador - junto da Trunca Edições - da Antologia de Poesias de Luta da América Latina)
[1] Roque Dalton (El Salvador, 1935-1975), um dos maiores poetas de luta da América Latina no século XX, disse em sua Arte poética: “Poesia / perdoe-me por te ajudar a compreender / que não está feita só de palavras”. O trecho citado no texto é do poema “À poesia”. [2] Dardo Sebastián Dorronzoro (Argentina, 1913-1976?), poeta e ferreiro socialista, sequestrado e morto por um esquadrão militar durante a ditadura em seu país. O verso citado faz parte de seu belíssimo poema “Declaração jurada”.
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