Angye Gaona, perseguição política e sua tradução ao português
Traduzi para o português, em 2012, o primeiro livro de poesias da poeta colombiana Angye Gaona,"Nascimento Volátil", poeta que, na época, havia sido presa e vivia uma perseguição política do estado autoritário colombiano. Abaixo segue a intodução que escrevi para esse livro que foi publicado pela fábrica ocupada Flaskô. Ao final, 3 poemas de Angye Gaona! Boa leitura!
Poeta colombiana Angye Gaona: acusada de liberdade!
Em janeiro de 2011, a poeta colombiana Angye Gaona voltando de viagem a Venezuela foi presa pela polícia da Colômbia acusada absurdamente de “narcotráfico” e “rebelião”. Durante longos 4 meses, mesmo sem provas, permaneceu encarcerada.
Vencido o prazo máximo para seu julgamento, Angye teve que ser posta em liberdade condicional enquanto seu processo se arrasta indefinido até hoje. É interessante ao governo que seja assim, para mantê-la sobre “liberdade” vigiada, com a ameaça constante da sentença de 20 anos de prisão pairando sobre sua cabeça.
Para entender o processo kafkiano por qual passa Angye (e milhares de outros colombianos) é preciso entender os reais motivos de sua prisão e, para isso, compreender a Colômbia, verdadeiro ponto-cego da América, apagada pela mídia e pouco discutida até mesmo pelas organizações de esquerda.
Colômbia: miséria e rebeldia
A Colômbia, apesar de ser a 4ª maior economia da América Latina, é o 3º país mais desigual do mundo: 68% da população são miseráveis e pobres que “vivem” ao lado de uns poucos milionários, como o banqueiro Sarmiento Angulo que domina quase metade das finanças do país, sendo o 75º no ranking dos mais ricos do mundo. Essa já grande desigualdade vem crescendo enormemente com a ação das multinacionais que exploram e roubam as riquezas naturais do país, agindo sobre 40% do território (áreas já concedidas ou em trâmite).
Esse quadro de desigualdade vem se construindo ao longo da história do país, gerando choques violentos entre liberais, conservadores e comunistas. Um dos mais marcantes acontecimentos de sua história ocorreu em 1964, quando liberais e conservadores lançaram o exército contra camponeses rebelados influenciados pelos comunistas, promovendo o Massacre de Marquetália. Deste massacre, escapam para as selvas 48 camponeses, os quais fundam as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e dão início a mais antiga guerrilha do mundo, que controla hoje entre 15% e 20% do território colombiano. Neste contexto de enormes desigualdades e intensa revolta popular, os governos colombianos (Ayala, Uribe e, agora, Santos) vêm reprimindo duramente qualquer manifestação de pensamento crítico; criminalizando as liberdades de expressão, manifestação e livre organização e reduzindo as FARC a um grupo “narco-terrorista”, ignorando suas reivindicações políticas. Tudo isso com enorme apoio militar dos EUA (Plano Colômbia) que tem interesse geopolítico e econômico na região.
O terrorismo de Estado na Colômbia
Atualmente, há na Colômbia pelo menos 7.500 presos políticos: 90% de civis - sindicalistas, jornalistas, acadêmicos, estudantes, ambientalistas, camponeses - e apenas 10% de membros d
as FARC. Dados oficiais da Defensoria do Povo, vinculado ao Ministério Público da Colômbia, reconhecem que há 61.604 pessoas “desaparecidas” nos últimos 20 anos, sendo que outros 16.655 ainda não receberam esse status, pois desapareceram há “pouco tempo” (os números estimados pelos movimentos são bem maiores). Em 2010, a Central Unitária dos Trabalhadores da Colômbia denunciou que, em 10 anos, 2.778 sindicalistas foram assassinados, ou seja, 60% dos sindicalistas assassinados no mundo. São comuns as práticas de tortura e assassinatos exemplares praticados pelo exército e pelas milícias de paramilitares que são incentivadas e acobertadas pelo governo. Recentemente, foi encontrada nos arredores da base militar da Força Tarefa Omega (menina-dos-olhos do Plano Colômbia), a maior cova comum do continente com 2000 corpos de “desaparecidos”. Os números indicam um novo recorde macabro na América: a “democracia” colombiana tem destruído mais vidas que as ditaduras do Chile e da Argentina juntas (as duas mais sangrentas da América!).
“E se um menino preso chora, dirás,
e se um homem é torturado, dirás.”
Angye Gaona
O terror de Estado na Colômbia tem intimidado a população que se cala para não ser presa ou morrer. A poeta Angye Gaona, ao contrário, vem se posicionando publicamente a favor da luta dos trabalhadores, estudantes e dos milhares de presos políticos. Artista de intensa atividade cultural, Angye trava com sua poesia e com sua arte o bom combate, auxiliando na construção da esperança para todos que desejam afirmar a vida na Colômbia, apoiando diretamente a luta dos presos políticos. Por isso mesmo, o governo de Santos armou sua prisão com um julgamento de “cartas marcadas”.
Para garantir a liberdade de Angye e dos demais presos políticos é preciso uma campanha internacional que denuncie o terrorismo de Estado colombiano. Calar diante da situação colombiana é aceitar, indiretamente, que o mesmo ocorra em outros países da América. É visível, nestes últimos anos no Brasil, o fortalecimento de posições fascistas e de ultra-direita, o crescente desrespeito aos direitos humanos manifesto mais claramente nas ações policiais e militares nas favelas, periferias, universidades e ocupações.
Por isso, é preciso forjar, apesar das dificuldades, a unidade da luta latinoamericana, pois um fantasma ronda a América... e, infelizmente, não parece ser o do comunismo. No Brasil, a Agenda Brasil-Colômbia (http://agendacolombiabrasil.blogspot.com/), comitê constituído por colombianos e brasileiros, vêm buscando denunciar a situação de terror-ditatorial da Colômbia em nosso país e compartilhar com os lutadores colombianos a situação política brasileira, ainda marcada pelas ditaduras de ontem e de hoje. É preciso que cada vez mais falemos uma só língua, a da classe trabalhadora de nossa Grande Pátria. Como diz Angye, em um de seus mais belos poemas, “é momento de forjar e fazer luzir o fio”!
Nascimento Volátil
Conheci a poesia e a história de Angye enquanto pesquisava sobre poesia de luta na América Latina. Durante sua prisão, traduzi algumas de suas poesias para fortalecer a campanha internacional por sua liberdade. Assim que foi posta em liberdade condicional, aguardando julgamento, estabeleci contato e desde logo começamos uma fraterna amizade que, apesar de virtual, é forjada na concretude do que nos comove e move: a poesia e a luta pela liberdade plena.
A divulgação no Brasil da situação dos presos políticos da Colômbia (e do caso de Angye) surtiu bons frutos: Batata, quadrinista de combate e trabalhador da Fábrica Ocupada Flaskô, desenhou o poema “A fuga” de Angye e também estreitou contato com a poeta. É assim que nasce a ponte entre Angye, Colômbia e a Flaskô: ponte concreta que nasce e se lança por sobre quilômetros de distância com a publicação deste livro.
Acredito que são desses “nascimentos voláteis” de que fala Angye... algo antigo - e sempre novo - está nascendo deste belo encontro da luta do povo colombiano com a luta dos trabalhadores da Flaskô em defesa do controle operário. Prova concreta de que a luta e a poesia da classe trabalhadora não têm fronteiras e deve, cada vez mais, se tornar uma só. Uma só voz, um só canto, uma só força: que os trabalhadores se façam soberanos sobre seu próprio trabalho; que o povo colombiano se faça soberano sobre sua vontade de vida e liberdade; que a poesia se faça pão na luta do homem e da mulher por se fazerem verdadeiramente humanos.
Espero que o livro de Angye Gaona inaugure essa comunhão de revoltas!
Jefferson Vasques - Poeta, militante e tradutor deste livro
A fuga
Perde a casa,
salte do leito,
enche os bolsos de fugas,
olha passar pelas janelas
tua conta pendente de paisagens intocadas.
Encontra, de madrugada,
o grito interior do distante;
ou de tarde,
a bola de lodo no peito:
acumulação malsã de famílias enoveladas
que te deram em uso seus nomes,
agora gastos, errantes.
Marcha até o tédio, sangue meu.
Não queiras pisar o povo fértil que te chama a sua memória
só até perder-se mais,
perder-se melhor onde prefiras:
no oceano de graças deslumbrantes e profundas,
no deserto letárgico e eqüidistante de casa,
na montanha fecunda onde se multiplicam os caminhos.
Pisa aqui e ali até agonizar.
Volta a partir quando te tomem por louca
e tentem te enviar de barco a outro porto
ou te tratem como mercadoria que se perde nos bazares
de quem ninguém sabe de onde seu brilho ou avaria.
Entre tanto, estará teu povo fértil
crescendo abundante como terra descansada,
esperando ver florescer tua vara
e teu fazer.
Tecido brando
Calma e tino te digo, peito brando.
Não queiras conter toda a água dos mares.
Toma uns litros de ondas bravas,
de espuma fera.
Deixa que se encrespe dentro de ti,
cavalo afrontado,
mas não domes esta água
que o tempo a requer viva
e pungente.
Respira e prepara-te, peito brando.
Não queiras conter todo o ar dos abismos,
toma só o de tua pequena inspiração,
o acaricie por instantes,
o sussurre como se ao último alento
e o deixe livre ir ali,
onde tu também querias:
vasto, imenso, indistinto.
Sopra forte o que guardas.
Não recolhas mais lágrimas, peito brando.
E se um menino preso chora, dirás,
e se um homem é torturado, dirás.
Que não é tempo de guardar a ira, te digo.
É momento de forjar e fazer luzir
o fio.
Caminho
O caminho entrou pela janela
como um ramo que a tormenta afugenta.
Chovia.
Agudos nomes caíam gravemente,
desde cima entoados,
chamados a rodar pelas calçadas.
As casas se tornaram caminhos
ou foram atravessadas por eles.
A lucidez se apoderou das casas.
Os habitantes buscaram os terraços,
ascenderam e alçaram suas frontes com fervor
para o raio que revelou o caminho,
por um instante.
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